quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Terra do Nunca

Uma menininha caminha desorientada numa escuridão tão densa, que ela mal tem consciência de si. Tropeça aqui e ali, os joelhos ralados, as pernas e os braços cortados, a pele do rosto arranhada por suas próprias unhas... O vestidinho vermelho sujo de lama, a gola branca borrada de lágrimas e sangue, misturados, num cor-de-rosa cheio de dor. Ela sabia que não podia se sujar, sabia disso, gritaria com ela, brigaria com ela, ela sentia medo, no escuro ninguém poderia mais fazer ela se sentir inferior ou pior que os outros. A escuridão, a solidão, naquele momento, significava se libertar das agressões. 
E de repente, naquele mundo confuso, sem começo, sem fim, sem ter para onde correr, sem ter lugar para se esconder, um holofote de luz surge sobre ela. E ela pode finalmente ver a si mesma. O desespero aumenta, lágrimas a cegam, soluços da alma a fazem tremer. Uma mão se estende. "Agarre-a" diz uma voz familiar, "agarre-a e se ponha fora daí dessa pocilga!" Uma voz que ela já conhecia... "Essa sou eu?" se perguntou. As lágrimas foram diminuindo sua correnteza, os soluços ficaram mais espaçados. Ela viu resgate ali, viu segurança. Não devia mais ter medo de seus segredos. Foi arrastada num puxão violento. Abriu os olhos e viu a lua. Era noite.
Um copo em sua mão, olhares familiares divertidos. Ela se vê exposta. Ela se vê numa casca da qual sentia tamanha saudade. Ela suspirava entre os dentes. Ela lembrava de momentos fortes de tontura, momentos fortes de embriaguês sem álcool. Sentiu uma emoção, uma esperança. Sentiu uma vontade de correr aos pulinhos e subir nos bancos, e o fez. Embolou a língua com algumas palavras, sentiu vontade de deixá-las mal-faladas, e assim as deixou. Embolou a língua com o conteúdo do copo, e deixou escorrer uma única gota pelo canto da boca, não sentiu vontade de acertá-la e a deixou escorrer gentil. Sentiu vontade de brincar com a vida, de rir de tudo, e riu. E sentiu vontade de mudar sua situação. Sentiu vontades que nem suas mais profundas vontades jamais a deixaram entender. Sentiu ânsias sorridentes e esticou os olhos para onde suas profundas vontades escondidas a mandaram esticar. Observou silêncio. Sacudiu-se nas bases. Decidiu coisas novas para suas profundas vontades. Decidiu que quando, chegada a hora, iria e pronto. E isso a trouxe euforia.
Enxergando além, viu um menino... Era-o nos olhos, nos dedos, no copo e nas palavras. Tonta pelas palavras pouco significativas que a Tia Garrafa dizia, esticou mais que os olhos, esticou mãos, esticou coragem, esticou decisão, esticou esperança, e por fim, esticou os lábios. Estendida estava ao menino. Deram as mãos.
Mesmo na noite mais escura, havia lua. Mesmo no frio mais crepitante, havia calor. E na ansiedade e na esperança, havia manhã. E na manhã, havia um espanto. E no espanto, um laço. Mãos com mãos, dançaram sob o som da espera, sob o som da realização. E mãos com mãos, escolheram uma trilhazinha pela floresta sombria, onde somente caminham os meninos perdidos, lá na Terra do Nunca.
Pois é assim mesmo. As surpresas da vida, as emoções descomunais que o que está além da realidade cria. E a Terra do Nunca? Muitos tolos se enganam, não é um lugar para qualquer um. É mais do que a capacidade de sonhar, mais do que sentir esperança, mais do que ter amor às coisinhas pequenas e acreditar em fadas. É conseguir viver a vida inteira sem nunca estar a mais de cinco palmos do chão.

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