quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

21/01/2010

Chorei uma ou duas lágrimas de vidro, depois fechou. Elas desceram rasgando a cara e a boca e parte da língua e um pouco o pescoço e os dedos teus. Era esperado, era fatal. A tristeza, apesar de tudo, é bela: rota e maltrapilha, feita de cacos de vidro ensanguentados, mais, ainda sim, bela. Essas coisas acontecem. São sementes que nascem, crescem e dão flor. A raiz fica forte com o tempo e quando a flor que nasce não é aquela que achávamos que seria, vem novamente o inferno de ter de arrancar. Está fixa, forte e viva, mas se não é arrancada logo, quando chega o limite do absurdo, ou está forte demais na terra, ou morre e deixa a terra impossível de plantar mais. E ali, se a tempo, pode crescer outra semente, de igual beleza, mas de uma planta diferente; se diferente disso, nunca mais há de nascer nada ali.
Quem acreditou, acertou. Quem desacreditou, também acertou. No final, quem perdeu foi eu e ti, o resto não interessa a ninguém. Tentativa e erro, ficaram as coisas boas. Foi legal tentar.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Arritmia

O coração. Órgão da emoção? Órgão do impulso? Bomba de sangue. Maldito.
Só entendem os que tem arritmia cardíaca. Mas os outros podem tentar entender.
No teu peito está dormindo uma maldita bomba-relógio. O melhor seria arrancar o maldito marca-passos natural e trocar por um à bateria - menos chance de defeitos inesperados - e torcer para aquele passeio não ser para dentro de uma poça de magnetismo gigante-natural quando tu estiveres desprevenido (como se isso pudesse acontecer). E tu, de repente, sentes a testa leve, nuca pesada, braços pesados pernas e braços também... lascou-se. O teu maldito marca-passos natural começa a te trair como uma prostituta distribuindo fichas free. Tu vais odiá-lo. Vais temê-lo. E vais se conformar.
A arritmia vai estar lá para te lembrar que alguém não se preocupa se tu estás tranquilo ou tenso; vai estar lá para lembrar que tu amas alguém, ou sentes atração; vai estar lá para lembrar que tu és só um pedaço de carne frágil e doente que não pode com esforço excessivo; ela vais te ensinar o limite de existir, que nem tudo é possível. Vais te ensinar que a morte anda cheirando os teus sovacos e achando que está na hora de passar neles o desodorante macabro, mesmo que tal analogia pareça doentia - arritmia é doentia.
Tu vais gritar com ela, vais mandá-la respeitar teu bom momento, mas será em vão. E tu vais ficar estragadinho e ir receber carinho do desfibrilador se abusar - disse ela - beijos.
Arritmia: essa coisa que faz o teu coração bater errado, levar sangue do jeito errado, cansar teu miocárdio, fazer teu cardiologista se preocupar com a conta que você não vai pagar quando bater as botas. Essa coisa que faz tu entenderes que teu coração também tem ligações nervosas, e agradecer por não ser um tiro no peito - ou amaldiçoar.
Mas a arritmia também pode ser poética, tipo isso:
Acordei eu, acordou ela - a arritmia. Ela vibrava estranho, numa, sincronia desconhecida. Fazia-me perder o ar, e ficar tonta, mas não era o sangue; o coração em ritmo incomum conduzia mais.
Os olhos apertados, num movimento brusco, a luz grita no quarto. Olhos ardidos, peito arde. Não era só o coração.
A arritmia vai vibrando forte, estranho, fazendo tudo tremer, tamanha a força do impulso nervoso; tamanha a força de algo que não entendo porque. O fedor da esperança que volta a cheirar como incenso adocicado? O capim queimado do ontem, que voa e cai, como cinza, nas beiradas da janela? Uma marca de um passado que meu corpo não recorda? Um grito.
É o peito: o peito grita, e bagunça; o tu-tum fica errado, vira canção, e me deixa torporizada, mergulhada em uma neblina onde não dói, onde não tem medo, onde tudo é - é certo - como deveria ser. E, aos pouquinhos, a arritmia me vibra para um caminho de sonhos. E no fim, a morte estará, austera e inesperada, assim como a arritmia; assim como tudo.
Exceto a esperança. Ela é inimiga da arritmia. Ela faz a arritmia parar. E, ao mesmo tempo, incita crise pior. Como eu e tu: eu te odeio e sou contra ti porque não estás aqui, mas tu me incitas a resistir. E você, és a esperança, nem sei se realmente existe, mas está lá: num plano superior, onde não há... bem, tantas coisas... onde o ar não tem a obrigação de ser somente o ar. 
E onde somente a compreensão divina está, eu sou a arritmia. Talvez eu mesma seja a esperança também.


E a arritmia também pode ser poética de um jeito mais orgânico:
Num sono agitado, a cama tremia. Batia densa e pegajosa entre a palma do pé e o céu da boca, num ritmo gélido e mortífero. Ela descia suave, e depois subia levemente para a esquerda: o lado do coração. Na descida, descia sempre até o vácuo, e pouco voltava. Cada vez um vácuo maior, numa escala de um a mil, onde os degraus iam ficando cada vez mais altos.
Entre o colchão úmido e a pele ressequida, uma camada de ansiedade, medo e dor suave, excitante; uma sensação perigosa e terna. E o ar entrando pela janela, fresco, arrastando as migalhas do passado para debaixo da cama, onde dorme o monstro, e lá continua dormindo. E se for um monstro como os verdadeiros monstros devem ser, será só lembrança, pois nunca aconteceu. Monstros não existem.
Uma gota de suor despi a fronte. Cai na chama da vida. Um chamado das pernas chega a cabeça: fuga. Num pulo sem destreza, num tropeço no ar, tomba sobre o chão um par de pés fracos. As pernas vibrando, como a cama, joelho com joelho, joelho com parede, parede com nervo ciático, uma tremedeira sem música, sem som. Uma caminhada, um jorro de água desce pelo corpo, a mão que apara o olho, pois do rosto o olho está turvo; e os pés igualmente turvos tentam se proteger, e os órgãos igualmente baços, tentam se encolher, e vem a sensação de ser menor. E na água que para de jorrar, a volta. E na volta, o tombo. O chão frio bebe da saliva densa. Um grito se silencia na fraqueza. Uma voz se cala na espera. E uma hora vai embora. Ou a arritmia, ou a alma, quem será a primeira? Quem ganhar leva tudo.


Fico devendo mais, o sono me arrebatou.

O PORCO

... da Alfândega.
Não a alfândega que faz o policiamento das caixas grandes com coisas extrangeiras bonitas, mas a rua - Rua da Alfândega.
Uma loja de materiais em geral para artesanato, e outras coisinhas - e vem o (Viva!) carnaval (ou não-viva...) e todas aquelas coisas malucas começam a vender. 
A verdade é que foi inesperado - caixa de pintura é diferente de porco - e engraçado, e acima de tudo, a surpresa... Num stand de chapéus, lá estava o porco: rosa, como porco, com focinho de porco, e olhos malucos de porco, e pelinho de porco, tudo sintético; de pôr na cabeça. Sim, um chapéu. Quente-macio-fofo chapéu. Caixas sem fila. E logo o porco estava numa sacola. Depois, na minha cabeça. Depois na bolsa, e nos últimos dois, revezando. O porco. E a doida. E eu senti cheiro de uma pessoa, que diria: "Nossa, você está falando igualzinho ao" bem, é um robô, que é cão, e tem os bolinhos... deixa pra lá. E no porco, tantas coisas. Paguei pouco. Ganhei muito. Ganhei tantos sorrisos... Coisas que meros mortais não entendem. Os sorrisos não eram para mim, eram para eles mesmos. E é aí que mora a magia.