sábado, 30 de maio de 2009

Algema

Gelada, pendia pendurada. Balançava pesada, abatida, arranhada, seca.
Era uma pulseira sem beleza, uma corrente pendurada tão fortemente, que nem o mais poderoso dos martelos a rompia. Nem o olhar mais quente, nem o carinho mais sincero, nem o suspiro mais profundo a rompia.
- Oh, algema - dizia a Desejosa - deixa-o crer que o maior flagelo é ignorar o que há por dentro, e não sofrer... Que não há sofrimento maior que evitar viver por medo de sofrer!
E a algema ficou lá, gelada do mesmo jeito.
A corrente ia sendo arrastada, se arranhando ainda mais nas pedras, pesando a cada segundo um tiquinho mais. Cada elo deixando seixos nas pedras, os seixos empoeirados do próprio farelo; a pulseira suada por dentro deixando assaduras, cicatrizes, pequenos cortes do metal mal-polido por dentro, as farpas por dentro da pele, e a pele ficando já roxa e infeccionada. Eram as marcas do peso. 
Levava consigo a chave no cinto, mas a certeza e a falta de humildade não o deixavam ver! - oh Céus! - que logo o peso ficaria insuportável, que os ferimentos ficariam insuportáveis, e quando isso acontecesse, quem ele gostaria de encontrar não poderia mais ser reencontrado. Até que ponto podia significar a algema, até que ponto a força que a pôs ali era mais forte que a única força capaz de retirá-la??
Depois de tudo que importou, de repente, já não importava tanto. E logo chegaria o dia que não importaria mais. Apenas mais seixos na pedra, apenas mais um condenado pelas prórpias escolhas. 
Era assim o caminho do Incrédulo - assim como foi, assim como sempre será - ele, e a algema. Ele e suas convicções. Ele e seus medos. Ele e seus temores. Ele e sua algema. E nada mais.
Ou - por mais que seja improvável - aproveitar a chance novamente dada: viver intensamente o que negou por milênios de reviravoltas, e voltar uma útlima vez sem a algema.
Mas assim como o nome diz, Desejosa é apenas aquela que deseja. Deseja que o Incrédulo possa, um dia, acreditar.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Um farrapinho de conto - parte 1

Ela dormiu pesado depois do coito. A pele arrepiada, suada. Os cabelos largados para o lado da cama e as roupas - antes bem passadas - jogadas no chão. O bebê chorou alto no quarto, tão alto que a fez se remexer. Foi quando Ele levantou, espreguiçando-se, e foi olhar o mancebo. Estava lá, reboleando no berço suavemente, o rostinho contraindo pelo choro. Naquele momento, olhando pro próprio filho, escutando o pranto, teve raiva da própria vida. A grana entrava e as ideias para ela entrar mais ainda vinham em carreira. Mas não estava nada bem. Nada mesmo.
Caminhou até a cozinha, e deu o telefonema que ansiava. Era a gota final caindo, era a última alternativa. No meio de todo aquele tédio, ele sabia de onde poderia vir a vida. O telefone do outro lado chamou, chamou de novo. Nada. Chamou novamente, e depois caiu a ligação. Ele pensou: "Ela desligou na minha cara..." Era um quem sabe doído, inusitado. Era definitivamente um quem sabe.

Ele dormiu pesado depois do coito. A pele arrepiada, suada. Os cabelos largados para o lado da cama e as roupas - enxovalhadas de rolar no chão da casa bagunçada - jogadas no chão. O dono do boteco chorou alto na loja na esquina. Foi quando Ela levantou, espreguiçando-se, e foi comprar uma dose de vodka. Os bêbados casuais estavam no bar, reboleando nas cadeiras abruptamente, os olhos avermelhados pela bebida. Naquele momento, olhando pros próprios pés, escutando o lamento do dono do bar, teve preguiça da própria vida. A grana entrava e as ideias para ela sair mais ainda vinham em carreira. Mas não estava bem. Nada mesmo. Tomou toda vodka, voltou, e da porta, escutou o telefone tocando. Tocou, e tocou de novo. Não atendeu. Tocou novamente, e Ela desligou na cara de quem ligava. Ela pensou: "Ele me ligou..." Era uma certeza doída, inusitada. Era definitivamente uma certeza.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Na Veia / Na Alma

Chocante como ele anda correndo rápido... Ele se esgueira pegajoso numa esquina, ondula e reboleia no tubo estreito - a veia - para depois romper por um furo, e por mais outro, e por mais muitos.
Vermelho intenso - e quente - ele explode na pressão do peito, forte tal, que o faz perder a consistência da forma tubular, e num jato desordenado, segue seu caminho incerto...
Tamanha velocidade, tropeça, embola dentro de si, e espirra nas paredes da veia; os pingos mal tem tempo de pingar. Logo já estão na corrida, pela estrada sem certeza que vão seguir até voltar.
Entre uma explosão e outra, repousa em fila, esse é o seu normal. Mas ultimamente tem ido sempre tão rápido, vazado sempre por tantos furos, que a certeza de que um dia vai sair todo começa a ter muito mais sentido do que a certeza de que vai correr.



As energias fluindo. De um lado a outro, em um centímetro de certezas, de dúvidas. A alma pulsando lentamente, arrepiada, azedando no calor da dor, e do azedo fazendo vinho.
Pululantes, latejam cada detalhe: alguns tão perdidos no meio de inexplicáveis situações, outros tão avoados do resto, que mal fazem parte direito. Esfarelados por toda parte, os pedaços que caíram das beiradas ressecadas, a falta de humidade ainda agindo, e mais farelos que se desfazem.
Um vibrar incoerente, uma teimosia derradeira. Cada detalhe agindo separadamente, e todos os detalhes agindo em um igual meio: a alma. Ela se auto-destruindo, para não se estragar mais. E até onde??
Um corpo que cai, um corpo que levanta. Troca de energias, lei da natureza? Porcaria, tudo porcaria.
E na alma, como fica? E nos farelos ressecados, nos farelos mal-recolhidos, nos detalhes que vão se perdendo pela falta daquela humidade natural, e que vai morrendo? Não existe vitorioso, nem perdedor. No final, todo mundo morre.