sábado, 20 de dezembro de 2008

O expresso da meia-noite

Um dedo aponta numa direção incerta, um caminho está traçado em meio ás cinzas.
Deixe vir o vento, ele virá, e caminhar cega, em linhas desconhecidas estará novamente aí, como minha solução a tudo que esvazia.

Eram 11:53pm. Os sete minutos haviam sido postos no relógio de Cronus, a sorte lançada, era a hora de sentar e esperar. Os anseios reclusos, os intentos se desvendando novamente... O pano, o sumo, o tato. Uma reação em cadeia sem fim, pronta a se iniciar. O sete minutos viriam a passar, talvez como sete anos, mas sua contagem se processava, segundo por segundo, átomo por átomo estava a preparar um adeus. A chuva casta logo tocaria os chãos, e transformaria-se; faria de desertos, paraísos.
Uma luz confusa que crescia, uma luz lunar, um morar que se esvai, uma flor que passou do tempo... Deixa o vento levá-la (talvez a resposta), não deixa o vento levá-la (um desejo guardado na caixa das desgraças de Pandora). Um mergulho de cabeça, deixar espalhar o mar, deixar dizimar o astuto, deixar revelar a metade macia e carnosa de um fruto roubado, ceifado pela insanidade. Deixa viver...
A fumaça do expresso era jogada no ar, confundindo as vontades e os quereres, uma cegueira maior que a emocional. O barulho do apito ensurdeceria, roçando com velocidade descabida os sentidos enfraquecidos pelo balançar incessante das franjas... Os olhos em pedaços, sua morada funda; a beleza dos ossos sorrindo aos de fora, as carnes escapando das ironias devassas demais para serem ditas... Veja que no fim ainda restará algo para me orgulhar.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Voltou todo sangue... Voltaram as dores, existem coisas ruins das quais não dá para se livrar. Aceitar a realidade, jogar tudo para o alto, se libertar dos grilhões daquilo que esperam de você. E, então veja as coisas acontecendo.

A tremedeira das mãos, mal conseguiam alcançar o inalcansável. Era sair, fazer surgir novamente a seifadora de sorrisos. Ela voltaria, já era hora, uma hora todos precisam sentir na pele os erros. Se os erros desabrocham dessa forma, eles param de consumir.
Era quase visceral a necessidade de algo para resistir. Não era o fim ainda! Ainda havia passos que teriam de ser dados, ainda havia tanta coisa para destruir... Os pedaços pelo chão, comer a areia abandonada por toda parte, os pedaços de um sonho ilusão, um querer inventado, uma fuga absoluta. Querer florescer a dor era a fuga, a fuga, a única solução. Essa linha - amaldiçoada seja - que traçara em noites em claro de lágrimas, seria seguida. Não importa o quanto, seguiria por ela. Vou lutar por ela. Vou rasgar por ela. Deixa florescer, deixa... A tremedeira pode ser evitada, deixa despedaçar o que tiver de ser despedaçado, deixa que tudo caia de fraqueza, mas essa linha seria sempre. Ela ficaria intocada, eu andaria por ela.
Mergulhar os olhos novamente no caldo denso e adocicado, belo, deixá-lo espalhar pelo chão... Seria libertar, libertar o que consome, libertar o vibrar agoniado dos ossos, e voltar a vislumbrar o brilho natural das obsidianas.
A tremedeira domina, e um vislumbre de razão surge! A insanidade toma forma, olha com olhos arredios e histéricos, de longe, como é divertido poder ver aquilo acontecer. Piada... A tremedeira termina de fazer o trabalho que a razão começou, cruelmente torrencial. E o ácido corrosivo - esses devaneios - voltam com força total.
Mas deixar estar é o que se deve fazer por enquanto. Aos urubus - todos eles - será dada apenas a carniça que merecem.

Rebento

Do niilismo que fui fixo - ciumento! -
nesse substrato sucinto em demasia
Deixo gritar as paixões da biologia
num cruel e gigantesco fio de lamento.

Talvez tenha sido eu, parco, tal rebento
que após o desejo da chegada, passou
sem ventura, mas que tão querido ficou,
que encanta a maldição de seu nascimento!

Eis então que a ventura ganhou! Motivado
estava então tal rebento a sofrer o destino
e sua dor seria poema mal-acabado.

A luz seria doentia, a profundidade
boa amiga, os sentidos em desatino
o prazer maior dessa realidade.

E provar ao mundo que existir é uma desgraça necessária.
Existia ar ali. O estático foi se modificando, discretamente, até o momento que se arreganhou em cores diferentes das escuras e sombrias que os olhos já tinham se acostumado.
Era pequeno, mas enorme ao mesmo tempo; os detalhes prateados traziam algumas certezas sobre pedacinhos de acontecimentos e de intentos, e logo, então, para tal surpresa, abriram em brilho. Tinham um jeito de brilhar amorfo, a luz podendo ser completamente ignorada. Os detalhes menores se esboçando lentamente como um pedaço de arte, os maiores se fixando como uma tatuagem nas retinas. Algo que, raramente, acontece. Era suave, mas longe de ser delicado, oscilava num vai e vem calmo, medido, complexo.
O néctar compartilhado, o flutuar que ocasionava. Logo, tudo virou água. E a água subiu, se elevou, solapou, esfriou, esquentou, e depois virou um empecilho, mas também um veículo. Era talvez um pequeno pedaço de história que começava-se a escrever, talvez uma chance de poder transbordar novamente, sem placidez. A mesma água que ameaçou, e mudou tantas vezes, por fim foi uma parte daquele todo: um todo sem começo, sem meio, sem fim; apenas a continuidade diria todas as verdades.
Era novamente um prazer estar respirando.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

O anel

Antes dele estar aqui, já existia. Já existia na prata sua força, sua intensidade. Uma prata que saíra um dia da mina, que passara por tamanho número de mãos antes de ser o anel, sem que nenhuma de sua energia fosse perdida. Talvez outrora fosse uma taça, um garfo, outra jóia, mas nenhuma de tamanho valor. Talvez tivesse sido alguma rebarba, algum caco, algo dispensável, mas não agora onde ele estava. Não importava o que acontecera anteriormente, esse poder - poder supremo - que guarda o anel não iria se desfazer. Mesmo quando o dedo onde ele está se desfizesse, essa força tremenda estaria lá. E olhar para ele já era mais que rotina, senti-lo fazendo parte do dedo, como se fosse a quarta articulação.
Concebido, então seu par, passou em muitas mãos. Em nenhuma delas coube, em nenhuma delas se encaixou. Seu par estava longe então do anel, separado dele para sempre talvez. Iria para terra, sem jamais compreender a força do anel.
Mesmo que a terra sumisse, que a água secasse, que o fogo parasse de queimar e que o ar, de correr, o anel continuaria ali. A terra iria embora, a água estava secando aos poucos, o fogo se extinguindo sem combustível para queimar, o ar entrava e saia difícil. O éther era quase livre então. E o anel iria com ele.
O anel jamais sairia do dedo; mesmo sem seu significado, ele ainda significaria. Mesmo sem sua prata, a força estaria ali. O anel era o símbolo supremo, e não mais seria sujado por outras mãos. Estava no lugar certo, mas a hora era a errada. E seu par talvez nem existisse mais. Mas ele continuaria exatamente onde está. O seu verdadeiro significado, aquilo que fora selado por ele não iria embora, não importa o quanto doesse. Viria o véu preto, viria a rosa atirada no negro buraco, mas o anel ficaria.
Não era apenas um anel, era um grilhão arrastado por todos os segundos de existir, um peso vivo, que logo peso morto seria. Mas seria arrastado mesmo assim. Mesmo antes do anel, ele já estava ali. O anel já estava ali. Preso, no dedo. E nada seria capaz de tirá-lo, nada!
Quando deixei-me ver, já não estava mais lá. Retirei-me sucintamente, demasiada satisfeita para ver que ainda eram olhos cegos que olhavam para mim. Algumas palavras, foi-se na minha amada morada o último provar do mais doce mel. Não quero mais mel algum. Quero, ao menos dessa vez, dar-me ao luxo do luto de sua morte. Caminhe, caminhe por aí, mas em mim, vou matar-te, extinguir-te, esmagar-te como mereces, como mereces a borboleta delicada e frágil que sempre foste.
Deixe-me, ao menos por um instante respirar algo que não sejas tu. Deixe-me, por pelo menos um segundo, existir por algo que não sejas tu. Pode levar essa coisa cálida que guardei com tanto carinho por anos, leve embora de mim esta maldição.
A cada momento que penso que busquei, cegamente achar tamanho tolo sonho, sinto o corpo desaparecendo.

O silêncio devorava... Perdeu o sentido, mesmo as linhas curvas perderam seu lugar. Despersonificou, despersonalizou o indespersonalizável e estagnou. Flutuava no ar, impregnando de lodo tudo, e mesmo os mais leves movimentos gastavam tanta força, tanto ardor, que nada mais significava coisa alguma. Despedaçado e esturricado por toda parte, pegajoso, desleal.
Antes acompanhava sutilmente tudo, era resposta para as mais profundas perguntas, mas agora só empecílio, só imundice restava dele. E agarrava por tudo! Pelas paredes, pela pele, pelas moléculas do ar, pelos objetos bem cuidados, impregnando com dor, desespero e doença.
Eis então que surgiu e ficou clara a doença maior. O motivo da desmistificação e desembelezamento dele. Essas coisas de sonhar, de querer, essas coisas inúteis que impulsionam alguns, mas que ralos ainda apenas conseguem se corroer por ela. Essa coisa maldita, desdenhosa, mentirosa e suja.
Essa coisa precisava desaparecer, acima de tudo sumir para sempre, para limpar e purificar tudo de todo nojo, de todo ranço e rancor. Essa coisa venenosa, intravenal, líquida e quente, essa coisa pesada e crispada. E essa coisa há de desaparecer. E o silêncio vai voltar a ser belo, e vai voltar a ser leve, e vai voltar a impulsionar.
Melhor deixar pairar o vazio extremo do que preenchê-lo com dúvida.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Desejos / O meu mar

Como pude deixar-me acabar tão longe de mim?
Como pude permitir que tudo que eu sempre quis fosse destruído, despedaçado e mirrado por mim?
Oh, sou tua ghost, tua Lacrimosa, tua esfinge.
Estar e não existir, existir e não viver. Ou não estar, não existir, não viver?

Novamente sinto-me atraída aos vales das cruzes de mármore pelo perfume sedutor e adorável de criptas... Poder extirpar por fim esses suspiros ardidos e deficitários, flutuar além dessas moléculas e mergulhar na fúria do mar e de lá não ter de sair!
Eis que novamente vem ela: minha musa, minha senhora, essa incrível dama de tamanha beleza, que é proibida e foi coberta, pelos anos, pelo seu manto negro. Meu maior amor, minha espera, meu querer supremo, minha extrema unção.
Desejar-te voltou para me atormentar. Meu repouso se quebra, juntamente com todos os meus sonhos onde você não está. Você surge, ampara-me, mas nunca posso te tocar. Por você eu seria um homem, por você eu seria um sorriso, seria uma espada de prata. Não mais este réquiem.

Acordei com o mar nos olhos. Era saldado, deigado e arredio, buscava intensamente o chão. Esta ventura pode estar, então, chegando ao seu fim? Eu era vapor, era apenas uma essência gelada e sem existir algum, e logo nem mais o vapor frio e pegajoso do teu ar eu poderia ser.
O mar veio, revolto, e se jogou contra mim. Deslizou pela minha face, e depois escorreu - acre e sosso - pelas minhas entranhas vermelhas e adocicadas ainda de suspiros. Foi apodrecendo meus ossos vibrantes, meu baço repleto, e apagou o fogo do meu coração. Já não podia mais queimar-te, já não podia mais ser aquela pistola, era o desconstituir da criação, lento e dolorido, a cada segundo. Não queria parar o mar. Apenas dessa forma pude ver o fogo - o fogo destrutivo - e sentir que ele não estava mais ali.
Os passos sem jeito ficaram mais sem jeito, já não havia mais os apoios naturais para os braços ficarem; ambos membros pendiam apenas pela gravidade, à espera de serem arrancados por ela. As madeixas mal aparadas agora eram a última máscara, e mais que máscara eram a protecção contra o tudo de lá de fora. As palavras se desarticulando, perdendo seu significado, apenas deslizando suas ondas pelas moléculas repressoras a toda volta. Logo as ondas perderam o motivo de vibrar. Era apenas o ar que se afastava, e depois, nem mais era o ar. Era apenas o vibrar de minhas moléculas, a electricidade correndo. Mas o chamado, apesar de surdo, ainda lá estava. Nenhuma resposta. Apenas pena. Uma pena que não era para ter estado ali nunca.
As luzes fortes de aurora começaram a perder a forma, depois foram enfraquecendo, e apesar de significar que outro dia havia começado, não eram luzes ternas, nem quentes. A agressividade delas fizeram-me me cerrar ainda mais, e uma beirada rosada ficou pendurada para fora. Uma beirada que precisava - mais que tudo. - ser extinta. A necessidade de absorver o meio desaparecera; foi substituída por um entorpecimento suave, sem corpo, sem existir. Faltavam ainda dois passos, passos bem curtos para serem dados. A matemática, minha melhor conselheira, seria a peça que faltava para que um desses passos fossem dados. O outro, era preciso um esforço mais descomunal. No entanto, para poder deixar-me voar, sabia que o último passo jamais deveria ser dado. Que deveria ser ignorado nos caminhos estranhos que eu escolhera. O ser humano tem essa linda capacidade de se conformar.
E esse mar, malditíssimo mar, ele não terminaria de mim o que começou. Era melhor voar, e deixar apodrecer longe de mim esses pedaços sangrentos que nomearam.
Minha matemática, tamanho querida, dessa vez não tinha o poder de mudar aquele caminho. Era o nada, ou o nada. Era o nada daqui, ou o nada de outro lugar. No fim, o olhar ainda seria esfumaçado, e sem graça alguma.
Pude olhar uma flor que havia sido atirada no mar, na noite anterior, e vomitada por ele pela manhã. Para meu desespero, estava tão desfigurada, que consegui nela um espelho de verdade. E também nela, tive uma visão do futuro. Não podia deixar, de forma nenhuma que tu visses, com teus olhos castos, como ficaria a rosa depois que foi devorada pelo seu próprio mar.