domingo, 17 de janeiro de 2010

Arritmia

O coração. Órgão da emoção? Órgão do impulso? Bomba de sangue. Maldito.
Só entendem os que tem arritmia cardíaca. Mas os outros podem tentar entender.
No teu peito está dormindo uma maldita bomba-relógio. O melhor seria arrancar o maldito marca-passos natural e trocar por um à bateria - menos chance de defeitos inesperados - e torcer para aquele passeio não ser para dentro de uma poça de magnetismo gigante-natural quando tu estiveres desprevenido (como se isso pudesse acontecer). E tu, de repente, sentes a testa leve, nuca pesada, braços pesados pernas e braços também... lascou-se. O teu maldito marca-passos natural começa a te trair como uma prostituta distribuindo fichas free. Tu vais odiá-lo. Vais temê-lo. E vais se conformar.
A arritmia vai estar lá para te lembrar que alguém não se preocupa se tu estás tranquilo ou tenso; vai estar lá para lembrar que tu amas alguém, ou sentes atração; vai estar lá para lembrar que tu és só um pedaço de carne frágil e doente que não pode com esforço excessivo; ela vais te ensinar o limite de existir, que nem tudo é possível. Vais te ensinar que a morte anda cheirando os teus sovacos e achando que está na hora de passar neles o desodorante macabro, mesmo que tal analogia pareça doentia - arritmia é doentia.
Tu vais gritar com ela, vais mandá-la respeitar teu bom momento, mas será em vão. E tu vais ficar estragadinho e ir receber carinho do desfibrilador se abusar - disse ela - beijos.
Arritmia: essa coisa que faz o teu coração bater errado, levar sangue do jeito errado, cansar teu miocárdio, fazer teu cardiologista se preocupar com a conta que você não vai pagar quando bater as botas. Essa coisa que faz tu entenderes que teu coração também tem ligações nervosas, e agradecer por não ser um tiro no peito - ou amaldiçoar.
Mas a arritmia também pode ser poética, tipo isso:
Acordei eu, acordou ela - a arritmia. Ela vibrava estranho, numa, sincronia desconhecida. Fazia-me perder o ar, e ficar tonta, mas não era o sangue; o coração em ritmo incomum conduzia mais.
Os olhos apertados, num movimento brusco, a luz grita no quarto. Olhos ardidos, peito arde. Não era só o coração.
A arritmia vai vibrando forte, estranho, fazendo tudo tremer, tamanha a força do impulso nervoso; tamanha a força de algo que não entendo porque. O fedor da esperança que volta a cheirar como incenso adocicado? O capim queimado do ontem, que voa e cai, como cinza, nas beiradas da janela? Uma marca de um passado que meu corpo não recorda? Um grito.
É o peito: o peito grita, e bagunça; o tu-tum fica errado, vira canção, e me deixa torporizada, mergulhada em uma neblina onde não dói, onde não tem medo, onde tudo é - é certo - como deveria ser. E, aos pouquinhos, a arritmia me vibra para um caminho de sonhos. E no fim, a morte estará, austera e inesperada, assim como a arritmia; assim como tudo.
Exceto a esperança. Ela é inimiga da arritmia. Ela faz a arritmia parar. E, ao mesmo tempo, incita crise pior. Como eu e tu: eu te odeio e sou contra ti porque não estás aqui, mas tu me incitas a resistir. E você, és a esperança, nem sei se realmente existe, mas está lá: num plano superior, onde não há... bem, tantas coisas... onde o ar não tem a obrigação de ser somente o ar. 
E onde somente a compreensão divina está, eu sou a arritmia. Talvez eu mesma seja a esperança também.


E a arritmia também pode ser poética de um jeito mais orgânico:
Num sono agitado, a cama tremia. Batia densa e pegajosa entre a palma do pé e o céu da boca, num ritmo gélido e mortífero. Ela descia suave, e depois subia levemente para a esquerda: o lado do coração. Na descida, descia sempre até o vácuo, e pouco voltava. Cada vez um vácuo maior, numa escala de um a mil, onde os degraus iam ficando cada vez mais altos.
Entre o colchão úmido e a pele ressequida, uma camada de ansiedade, medo e dor suave, excitante; uma sensação perigosa e terna. E o ar entrando pela janela, fresco, arrastando as migalhas do passado para debaixo da cama, onde dorme o monstro, e lá continua dormindo. E se for um monstro como os verdadeiros monstros devem ser, será só lembrança, pois nunca aconteceu. Monstros não existem.
Uma gota de suor despi a fronte. Cai na chama da vida. Um chamado das pernas chega a cabeça: fuga. Num pulo sem destreza, num tropeço no ar, tomba sobre o chão um par de pés fracos. As pernas vibrando, como a cama, joelho com joelho, joelho com parede, parede com nervo ciático, uma tremedeira sem música, sem som. Uma caminhada, um jorro de água desce pelo corpo, a mão que apara o olho, pois do rosto o olho está turvo; e os pés igualmente turvos tentam se proteger, e os órgãos igualmente baços, tentam se encolher, e vem a sensação de ser menor. E na água que para de jorrar, a volta. E na volta, o tombo. O chão frio bebe da saliva densa. Um grito se silencia na fraqueza. Uma voz se cala na espera. E uma hora vai embora. Ou a arritmia, ou a alma, quem será a primeira? Quem ganhar leva tudo.


Fico devendo mais, o sono me arrebatou.

2 comentários:

Anônimo disse...

fascinante. adorei o jeito que vc escreveu. Meio tenso o tema e talz, mas gostei da forma crua, despida de frescuras e ainda assim poética

Anônimo disse...

Mewwwww achei muito maneiro esse texto !!
Por favor , continua escrevendo mais sobre arritmia , me empolguei muito lendo isso .