quarta-feira, 3 de março de 2010

Arrastou a capa escura pelo tapete marfim e dobrou-a em um movimento brusco. Sentou-se com os joelhos muito juntos, mas o defeito das pernas afastou, natural e sutilmente, um calcanhar do outro. Jogou a franja, já lateral, um pouco mais para o lado e tossiu suavemente antes de fazer com a cabeça o sinal de que estava pronta para que começassem. Olhou para o juiz, para os advogado de defesa, para o promotor, e para o juri. Com os olhos inchados de choro, ergueu-se nas pernas, numa postura respeitosa e olhou para todos. Por fim, acenou com a cabeça para o juiz. O martelo desceu em quarto de círculo até alcançar seu apoio. O som ecoou pelo tribunal. E assim começava o julgamento. 
Um homem de terno trouxe embalagens plásticas e pôs sobre a mesa do juiz. Uma delas continha um poema; a outra, uma lâmina. A terceira continha cacos de um objeto quebrado.
A promotoria era formada por um homem gorduxo, com bigodes como os homens de antigamente possuiam bigode, um terno como os homens de antigamente vestiam, e calças como os homens de antigamente usavam para sentirem-se elegantes. Seu nome era Patriarcal. Logo atrás da mesa da promotoria, um público de pessoas, todas da família da vítima, olhavam com olhar reprovador para a figura de capa. E a figura sentada, a franja tombada suavemente na testa, o rosto quase virado para dentro tamanha a timidez... 
Do outro lado, os advogados de defesa. Eram dois advogados. Um chamado Juventude, um chamado Intimismo e o terceiro se chamava Moderno. Atrás deles estavam dezenas de adolescentes e até adultos, todos confrontados pelo flagelos do amor, da traição, da rejeição, da luxúria, da vaidade. Todos avassalados pelo sofrimento do ser humano como besta social. Ali atrás somente uma excessão houve a isso. Era uma pessoa limpa; não estava disforme de lágrimas, ou de tristeza, ou torcida nas forças dos dedos do apropriado-inapropriado. Tinha cabelos castanhos, lisos com algumas ondas dispersas nas pontas, a cara branca achatada por dentro das mechas de cabelo e o olhar distinto, mas duro e, ao mesmo tempo, atencioso. Estava lá, o gorro do casaco sobre a cabeça, sem falar nada, sem incomodar ninguém. 
O promotor se ergue. Caminha em direção a mesa do juiz e diz:
-Prova um, por favor.
O homem de terno abre a primeira embalagem. O juiz, com o poema em mãos, pede ao promotor para prosseguir.
-Pois bem, Vossa Excelência, como pode ver, esse é um poema escrito na presença dela. O conteúdo é depressivo, se fala no nome dela diversas vezes. Junto ao nome dela, o nome de coisas relacionadas a morte, a dor e a tristeza. O flagelo dela está evidentemente exposto aí, com palavras. A prova dois, por favor. 
E a segunda embalagem é aberta. A lâmina, nas mãos do juiz, esta suja de sangue, e misturado à mancha, ferrugem.
-Pois bem, Vossa excelência, veja as consequências do que diz no poema, graças a ela, por período prolongado. O flagelo da tristeza que ela causa leva a medidas extremas, em alguns casos. A prova três, por favor.
E os cacos na mão do juiz.
-Pois bem, Vossa Excelência, aí está a prova três. O nome desse objeto é lembrança. Venha como está, depois do flagelo intenso da ré. Gostaria de falar diretamente a ré, agora.
E a pessoa da capa se põe de pé.
-Você estava presente na execução do poema?
-Sim.
-E no momento que a lâmina foi usada?
-Sim.
-E no momento que a memória foi quebrada?
-Sim.
-Pois então, juri, juiz, acredito que meu discurso até agora seja o bastante.
Senta-se então o Patriarcal. E a defesa se levanta.
Primeiro, a Juventide.
-Vossa Excelência, todos os fatores acima, por mais que tenham relação com a ré, são também relacionados com o furor que a idade tenra trás!
Segundo, o Intimismo.
-Vossa Excelência, existem iguais crimes também cometidos sem a necessidade da presença da ré! Isso é tudo uma questão de como está a relação da pessoa com suas prórprias emoções! 
Terceiro, o Moderno:
-Vossa Excelência, atualmente é natural que a ré esteja presente em muitos momentos e isso não faz dela a criminosa!
E pediram a ré que se levantasse.
-As pessoas superam essas crises, na maioria das vezes, depois que amadurecem?-a Juventude.
-Sim.
-As pessoas passam por esses momentos mesmo sem a sua real presença, não é?
-Sim.
-As pessoas de hoje estão sim acostumadas a lidar com você, e a te compreender, correto?
-Correto.
E o juri olha a defesa, e abaixa os olhos. A cabeça faz sinal reprovador.
A ré, então, com permissão do juiz, fica de pé, e tira de sua bolsa três objetos. Um livro, e nele está o conhecimento. Um espelho com moldura de cobre, bem fininha, e um frasco opaco da cor verde. 
Ela pede para falar, e o juiz acata.
Ela então começa sua verdadeira defesa.
-Vossa Excelência, este livro é o único real livro que as pessoas leem, e somente na minha presença podem ler. Aqui está o conhecimento, o pensamento, a formação do saber. É somente em minha presença que as pessoas podem o ler.
Este é o espelho do auto-conhecimento. É somente na minha presença que as pessoas conseguem utilizá-lo. A presença de outros pode desvirtuar a imagem, ou deformar o reflexo.
Este frasco, pois é nele que está o produto de tudo que se pensa na minha presença. É nele que está a certeza da realização, é nele que estão os planos para o futuro, as ambições, os sonhos, e somente, somente na minha presença, as pessoas podem usufruir de seu conteúdo. O nome do conteúdo é esperança.
Graças a minha ausência, as pessoas deixam de sofrer o flagelo da traição, da indiferença, do desprezo, e podem realmente olhar para estes três objetos e acreditar no futuro. Eu fui desvirtuada, tomada por grupos, ofendida no meu real significado, e incompreendida. Os artistas, os pensadores, filósofos, físicos, todos eles contaram um pouco comigo para crescer. O meu excesso levou  a hipocrisia de achar-me não necessária, nessa unidade conservadora onde a família é a constituição de maior importância do Estado; a minha falta e a minha desapreciação levou a todos aqueles, do lado da defesa, a me acharem como a rainha de algo que não sou.
Eu fui traída pelos meus objetivos, relevada pela ignorância e culapda de crimes que não cometi, mas as pessoas cometeram em meu nome e me culpam por algo que não decidi para elas.
-Então- diz o juiz -erguida, diga: qual é o seu nome?
-O meu nome é Solidão.
O juri olhou então a franja caída cair mais sobre um dos olhos, o tronco ficar mais erguido e os ombros menos tensos. Viu a sinceridade. Declarada inocente.
E, dos que estavam ao lado da defesa, se ergue esse homem, rapaz anda para muitos mundos, homem para outros, e caminha até o mais próximo da mesa dela que ele pode. Ergue a voz, respeitosamente, e diz:
-Eu sou o filho pródigo da Solidão. Ela estava ao meu lado quando precisei dela, soube ir-se no momento certo. Eu sou forte, mas não sou sozinho. Olhe ao lado da promotoria, a família, e me diga, qualquer um de vocês, se realmente já precisaram que ela estivesse ao lado de vocês, efetivamente, para que a sentissem em seus calcanhares.
Pois eu digo: não é a juventude, não é o intimismo nem a modernidade, é mais que isso. É algo dela para eles, eles que não souberam medi-la e apreciá-la do jeito certo. E colocam a culpa nela porque não tem mais quem culpar por sua infelicidade e falta de capacidade de amar a si mesmo.








Pois talvez eu seja um pouquinho a Solidão...

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